quinta-feira, 26 de maio de 2011

Radiohead - The King of Limbs

A complexidade simplória 

Cá estou, observando o breu da madrugada perante a janela. Com uma perplexidade infantil, analiso cuidadosamente as ruas molhadas pelos respingos de água que eventualmente despencam do céu. Por vezes, surgem automóveis, que, como lobos solitários, às vezes trafegam pelas ruas desertas. Sinto uma necessidade extrema de ingerir álcool; sirvo-me uma dose de whiskey barato e sorvo uma parcela generosa, o arrepio parece invadir a alma. Quando a descompassada “Bloom” começa a soar pelos fones de ouvido, já estou imerso e preparado para uma viagem alucinante e perturbadora, que durará quase 40 minutos.



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Certa vez um amigo meu afirmou: "Você não escuta Radiohead, você sente Radiohead". Apesar de ter achado tal assertiva, naquele momento, um tanto piegas, posteriormente consegui compreender o que ele quis dizer. Radiohead se trata, certamente, de uma banda sui generis no mainstream da música pop. 

Desde o início, isto é, de "Pablo Honey", apesar de forma tímida, já era possível notar algo de único, uma espécie de vanguarda contida. De lá para cá a banda fez coisas inacreditáveis. Em "The Bends" e "Ok Computer" operou tentativas extremamente bem sucedidas de firmar uma musicalidade perfeita, cujos efeitos ricochetearam por todos os lados, praticamente estabelecendo as novas diretrizes da música inglesa. "Kid A" e "Amnesiac", por sua vez, tentaram, de forma iconoclasta, desconstituir ao extremo tudo o que a banda havia produzido até então, numa forma de suicídio musical. Diz-se, desde então, que o Radiohead esfriou. A partir de "Hail to the Thief" tornou-se impossível prever para onde o grupo seguiria. "In Rainbows" surgiria depois, com o retorno triunfante das guitarras, mescladas com os dissonantes beats eletrônicos e melodias mais fluidas e amigáveis, parecendo que a banda, enfim, havia encontrado sua sonoridade perfeita. 

 
















* Meninos talentosos

Daí surge, inesperadamente, "The King of Limbs". Nas primeiras audições, fiquei pasmo. A estranheza à primeira vista (ou escutada), uma constante desde os primeiros discos do grupo, permanece a mesma. O que me saltou aos olhos (ou aos ouvidos), desde o começo, é a infinita tristeza/sombriedade contida no disco. As guitarras foram embora, só restaram tímidos violões; as letras possuem sentidos obscuros; a voz de Thom Yorke mantém um tenebroso ar fantasmagórico; ambientações eletrônicas conduzem, às vezes timidamente, às vezes ressaltadas, a maior parte das canções. Parece, na verdade, o retrato do fim do mundo. Mas, é exatamente aí que The King of Limbs esconde sua beleza majestosa.

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Bloom é a introdução devastadora, uma visão terrível de uma terra em destruição. Mas é um mundo de introspecção, íntimo. E o eu-lírico mergulha nos olhos encharcados pelas lágrimas, e, numa ironia quase pungente, ainda diz observar um peixinho nadando. Quanto a mim, eu mergulho na vastidão noturna, mesmo que assista apenas de camarote aquele espetáculo silencioso. Mas o whiskey barato ainda desce cortante, queimando minhas entranhas. O oceano floresce, engole a terra, enquanto o mundo calmamente desaparece no fundo do mar. Neste momento, o vocal de Yorke parece um punhal, e aí sinto sua poesia a fundo: "and while the ocean blooms / it's what keeps me alive"

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As canções, intrisecamente interligadas, fazem do todo um conjunto complexo, parecendo um disco de uma música só. À medida que se familiariza com as músicas, tudo vai se tornando sombrio e belo, resultando numa dualidade devastadora entre a angústia e a rendição. É o efeito de uma combinação sinérgica entre ambient music, jazz fusion, new age e o rock tipicamente britânico da banda. Com essa junção, o Radiohead conseguiu ser tão intimista que Brian Eno deve ter corado ao ouvir o disco.

Um pouco diferente da linha do disco anterior, as letras estão mais indiretas, e até confusas. Mas, até certo ponto, elas parecem interligar-se entre si. Durante quase o disco inteiro, a voz de Yorke não parece humana, assemelhando-se quase a um instrumento musical. E, esse particular, é um dos pontos fortes do disco. Tom Yorke canta como não se houvesse amanhã, e isso ressalta a desolação do disco. Radiohead e Sigur Rós nunca estiveram tão próximos.

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Já um pouco tonto, e ainda sentindo a ressonância do riff de guitarra da fantástica "Morning Mr. Magpie", uma evolução do conceito de "Bodysnatchers", "Little By Little" começa, justamente quando estou mais vulnerável. O relógio de letreiro berrante marca 3:14 da manhã, e uma brisa fria anuncia o fim da chuva. Sentado, agora, na poltrona, e olhando para o fundo do quarto, a única coisa que consigo identificar é a silhueta do violão. Feral, a quarta faixa, inicia, e, com auxílio de seu ar fantasmagórico, começo a observar vultos dançando na minha frente. – Olá, vocês podem me ouvir? – Como não obtive resposta, fiquei em silêncio.

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As reações ao disco (que foi lançado de surpresa, a exemplo de outros trabalhos anteriores do grupo) foram as mais diversas. No geral, foi aclamado como um grande trabalho (para variar), mas não sem razão. É um disco que cresce ao longo do tempo, só transparecendo sua genialidade após excessivas audições. Análises apressadas podem faltamente ensejar uma percepção errônea, de que supostamente se trata de uma obra menor na discografia da banda (http://screamyell.com.br/site/2011/02/28/cds-beady-eye-pj-harvey-radiohead/). Intimismo, na verdade, sempre foi ligado à inferioridade. Ora bolas, é mais fácil falar mal de algo que parece simples, e falar bem de algo que parece complexo. Para que tanta parafernália, se, na real, o que importa é a música? Bandas como Vampire Weekend não me deixam mentir.















*Dança espartana estilosa. 

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Quando “Lotus Flower”, o primeiro single do disco, começa, já estou completamente imerso na escuridão do meu quarto. Após focar durante minutos a fio o único ponto luminoso – o letreiro do relógio digital – minha visão periférica resta temporariamente comprometida, e a sensação é incrível. A melodia tenebrosa invade os ouvidos, e cruza o cérebro como um projétil atirado à queima roupa. Sinistras ambientações eletrônicas (que só podem ser notadas com o auxílio do fone de ouvido), parecem, as vezes, tomar conta do andamento da música. Nesse momento, levanto-me e arrisco uma dança desengonçada, a exemplo de Thom Yorke no clipe da música. Agora já estou dançando em meio aos vultos, e eles parecem sorridentes.

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Talvez o único ponto negativo do disco esteja mesmo na última canção, Separator, não porque seja exatamente ruim, mas sim em virtude de sua produção e arranjo burocráticos. Aqui a banda peca pela repetição, soando preguiçosa, e o disco perde força no final. Mas, de fato, é a única música viável para finalizar o disco.

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Codex, a melhor música do disco (uma espécie de balada mordaz e triste no estilo Smiths) começa, e já estou em estado de transe, pronto para apreciar a canção em seu estado puro que só é possível na mais profunda escuridão. Agora deito na cama e fecho os olhos. A letra parece confessar um sonho, daqueles que se situam na divisória entre o sonho bom e o pesadelo. Mas, na verdade, a música parece ser uma absolvição de um suicídio: “Slide your hand / Jump off the end / The water’s clear and innocent”. Yorke nunca cantou tão bem, e sua voz envolve tudo, parecendo emanar de todos os cantos do quarto. A música é simples e fantástica, uma das melhores que o grupo já fez. Give Up The Ghost inicia, e Thom Yorke, em tom de súplica, pede para alguém não machucá-lo. Neste momento, o corpo amolece, e começo a sentir o torpor sonolento ocasionado pelo cansaço e pelo álcool.

Pela metade de Separator adormeço completamente, e, quando acordo, totalmente descansado, não consigo lembrar com detalhes da madrugada anterior. Observo o quarto em volta, já tomado pelos raios fustigantes do sol. Caminho até a janela e, só aí, percebo a garrafa de whiskey encostada no criado mudo. Neste instante, ensaio um leve sorriso de satisfação, e lembro que tive um sonho; um sonho sensacional. Nota: 9,0.